quinta-feira, 2 de junho de 2005

A boneca Daniela

Venerada no mundo da moda, navalhada pelos intelectuais. Daniela era inclusive estudada em faculdades. Ícone da superficialidade moderna. Era a modelo da vez, e não era por menos. Dona de um corpo escultural, de um rosto deslumbrante, e de um charme inexplicável, Daniela ainda contava com um carisma incomparável. Na passarela era só Daniela. Virara febre internacional.
Modelo desde os doze anos, Daniela sempre se destacara, mas era agora que provava o gosto do apogeu. Tinha seus recém feitos vinte e um anos. A festa foi um verdadeiro conto de fadas. Fotografada por todas as revistas, elogiada por todos colunistas, satirizada pela massa intelectualista.
A mãe de Daniela a acompanhava em quase todas as viagens. Também modelo desde de jovem, agora já aposentada, Rosana cuidava de todos os passos da carreira da filha. Longe da inspeção da mãe, que não pudera desta vez acompanhá-la, Daniela desmaia pela primeira vez. Seis meses depois, viria a falecer, vítima de anorexia.
Um escândalo. Brotam ferozes críticas à cultura do corpo, ataca-se a moda. Um prato cheio para a minoria esclarecida, cuja voz, agora, virara moda, mas por pouco tempo. Não demorou muito e novas Danielas já eram cultuadas.
Um ano se passou. Rosana organizava um leilão com as roupas de Daniela. Sua profissão agora era não deixar morrer a imagem da filha. O armário de Daniela, até então intocado, é enfim aberto. Rosana seleciona cuidadosamente as peças. Lembra de Daniela, de sua perfeita beleza, de sua contagiante simpatia. Lembra de cada desfile, como era lindo ver Daniela na passarela.
No fundo do armário, perdida entre suas luxuosas roupas, se escondia uma boneca. A boneca “Daniela”.
Aparentava ter umas trezentas páginas, nenhuma numerada. A boneca, ainda – e agora para sempre – inacabada, estava escrita toda à mão. Logo na folha de rosto, uma nota, quase um recado.
Este livro, o quero à mão. Minhas rasuras, as quero vivas.
Nenhuma idéia deve ser perdida.

Na página seguinte uma breve apresentação.
A moda escarra e enfia
humano-fagia.
Solidão e melancolia,
a fingir-se de magia.

Sou uma moribunda em mais um dia...
nessa ciranda da apatia.
Da nudez fui despida, hoje estou perdida.
Uma vez assim vestida, só almejo despedida.

A vida assim doía...
Viva a anorexia!

Rosana fecha o livro, em pânico. Um súbito enjôo a faz suar as mãos que comprimem o livro fechado. Não conseguiria ler mais uma linha. Num cego impulso liga a lareira da pomposa sala e, página por página, queima aquela maldita boneca, inteira, infeliz rascunho, que, cinza por cinza, apaga para sempre da memória “Daniela”... um livro que morria antes mesmo de existir.
No dia seguinte, o Leilão é um sucesso. Daniela volta às manchetes. É lembrada como a eterna princesa da moda. E voltam os intelectos a atacá-la. Rosana está radiante.

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