quarta-feira, 22 de junho de 2005

Um adeus

O nome dele era Roberto Filgueiras, mas aqui é conhecido como Crispão. Roberto estava no camarim. Está parado, olhando para o espelho já não se sabe há quanto tempo. Talvez horas. De repente, chegando como um tapa, uma voz familiar o atinge agudamente: “15 minutos”. Roberto não aparenta susto, ou qualquer mudança em sua feição. Vira o rosto, abre um preguiçoso sorriso.
- Estarei pronto.
Volta-se para o espelho e fita mais uma vez o seu rosto, ainda nu... aquela velha e habitual expressão. Agora abre vagarosamente o seu estojo de maquiagem, fazendo soar um dolorido barulho. Concentrado, o ouve. Abre a tampa do seu já gasto pankake e olha por alguns segundos aquele sólido tapete de pó. O acaricia lentamente com a esponjinha surrada, que pouco a pouco vai colorindo sua pele de branco. Observa atentamente a transformação. Não está com pressa. Pega agora o batom, vermelho rubro, e pinta um esgarçado e engraçado sorriso. Com o lápis, vai redesenhando seu olhar... hoje, um desenho com linhas de despedida.
A Companhia há muito estava com problemas financeiros. Equilibravam-se, penduravam-se para sobreviver. A corda, enfim, rompera. As dívidas agora pesavam mais que o suportável. Todos estavam tristes, menos Roberto. Roberto estava rasgado. Parecia o único a admitir que o que mudou não foi o peso que carregavam, mas os ombros com os quais o carregavam...
Roberto era ator. Vivia de teatro desde os dezoito anos. Aos vinte e nove, o circo o encontrou. Está na mesma Companhia desde então. Hoje, aos cinqüenta e quatro anos, vive o dia que nunca imaginou.
Ao longe ouve o burburinho da platéia. A arena estava lotada. Mas mesmo que nada ouvisse já o sabia. O último dia atraía o público. O último dia de qualquer coisa sempre atrai público. Roberto ri da ironia. Era um homem bem esclarecido. Um tímido esboço de sorriso. Justo o homem que não suporta o fim, se delicia sempre em assisti-lo. Contanto que à distância, claro. O fim do outro. O sorriso por um instante vira riso, mas é logo calado pelo tom da ocasião.
Falta apenas o famoso nariz. Coloca-o com um quê de dor. Estava pronto! Crispão sai do camarim pulsando energia, com um sorriso que transborda a boca. Antes de entrar em cena, respira fundo. O ar agora era puro. Sente o chão que o devolve inteiro. Crispão sente-se inteiro por inteiro. Adentra a arena, triunfante. Não por vitória, mas exatamente por agora permitir o fracasso. Crispão não tinha que ser bom, estava longe do perfeito. Contava para todos seus segredos, fazia graça dos seus defeitos. Ali, não só o aceitavam, o adoravam. Crispão entrava sempre todo tímido. Os ombros entrando no pescoço, um andar andando torto, um olhar olhando o chão. A voz mal saía, falava baixo e sobre tudo fazia perguntas de inseguro. A platéia logo ria. Aos poucos Crispão se revelava. Um arrogante de primeira, que se escondia na vergonha. Tirava sarro da humildade, debochava da humanidade. A platéia gargalhava.
Crispão mentia e desmentia, e assim seu show seguia. Deliravam com Crispão. Seu número hoje durou mais que o habitual. Estava inspirado. Crispão brincava sempre com a mais sincera sinceridade. Hoje era Roberto que brincava. Na verdade sempre fora, mas pela primeira vez Roberto se deixava ver, mesmo sem o saber.
Está de volta ao camarim. Ainda ouve a euforia da platéia, que pouco a pouco se esvazia. Novamente olha fixo para o espelho, que, apesar da maquiagem, o devolve imagem nua. Roberto prolonga o encontro enquanto pode. Com bolinhas de algodão, vai borrando o rosto. Por detrás da branca máscara vai surgindo a velha expressão.
Roberto se despia de Crispão. Conformado, para ele dá adeus. Mas Roberto esclarecido, em algum lugar o sabia. No fundo, toda aquela tristeza não era por Crispão. Hoje percebeu o que há muito já sentia.
Roberto despedia-se de Roberto, um eu que só existia sob a máscara de Crispão.

Um comentário:

  1. Lindo texto.

    "Com o lápis, vai redesenhando seu olhar... hoje, um desenho com linhas de despedida". Triste, mas bonito demais. Escreves muito bem.

    Gostei muito também de "O sorriso por um instante vira riso, mas é logo calado pelo tom da ocasião".

    beijo

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