quarta-feira, 22 de junho de 2005

Um adeus

O nome dele era Roberto Filgueiras, mas aqui é conhecido como Crispão. Roberto estava no camarim. Está parado, olhando para o espelho já não se sabe há quanto tempo. Talvez horas. De repente, chegando como um tapa, uma voz familiar o atinge agudamente: “15 minutos”. Roberto não aparenta susto, ou qualquer mudança em sua feição. Vira o rosto, abre um preguiçoso sorriso.
- Estarei pronto.
Volta-se para o espelho e fita mais uma vez o seu rosto, ainda nu... aquela velha e habitual expressão. Agora abre vagarosamente o seu estojo de maquiagem, fazendo soar um dolorido barulho. Concentrado, o ouve. Abre a tampa do seu já gasto pankake e olha por alguns segundos aquele sólido tapete de pó. O acaricia lentamente com a esponjinha surrada, que pouco a pouco vai colorindo sua pele de branco. Observa atentamente a transformação. Não está com pressa. Pega agora o batom, vermelho rubro, e pinta um esgarçado e engraçado sorriso. Com o lápis, vai redesenhando seu olhar... hoje, um desenho com linhas de despedida.
A Companhia há muito estava com problemas financeiros. Equilibravam-se, penduravam-se para sobreviver. A corda, enfim, rompera. As dívidas agora pesavam mais que o suportável. Todos estavam tristes, menos Roberto. Roberto estava rasgado. Parecia o único a admitir que o que mudou não foi o peso que carregavam, mas os ombros com os quais o carregavam...
Roberto era ator. Vivia de teatro desde os dezoito anos. Aos vinte e nove, o circo o encontrou. Está na mesma Companhia desde então. Hoje, aos cinqüenta e quatro anos, vive o dia que nunca imaginou.
Ao longe ouve o burburinho da platéia. A arena estava lotada. Mas mesmo que nada ouvisse já o sabia. O último dia atraía o público. O último dia de qualquer coisa sempre atrai público. Roberto ri da ironia. Era um homem bem esclarecido. Um tímido esboço de sorriso. Justo o homem que não suporta o fim, se delicia sempre em assisti-lo. Contanto que à distância, claro. O fim do outro. O sorriso por um instante vira riso, mas é logo calado pelo tom da ocasião.
Falta apenas o famoso nariz. Coloca-o com um quê de dor. Estava pronto! Crispão sai do camarim pulsando energia, com um sorriso que transborda a boca. Antes de entrar em cena, respira fundo. O ar agora era puro. Sente o chão que o devolve inteiro. Crispão sente-se inteiro por inteiro. Adentra a arena, triunfante. Não por vitória, mas exatamente por agora permitir o fracasso. Crispão não tinha que ser bom, estava longe do perfeito. Contava para todos seus segredos, fazia graça dos seus defeitos. Ali, não só o aceitavam, o adoravam. Crispão entrava sempre todo tímido. Os ombros entrando no pescoço, um andar andando torto, um olhar olhando o chão. A voz mal saía, falava baixo e sobre tudo fazia perguntas de inseguro. A platéia logo ria. Aos poucos Crispão se revelava. Um arrogante de primeira, que se escondia na vergonha. Tirava sarro da humildade, debochava da humanidade. A platéia gargalhava.
Crispão mentia e desmentia, e assim seu show seguia. Deliravam com Crispão. Seu número hoje durou mais que o habitual. Estava inspirado. Crispão brincava sempre com a mais sincera sinceridade. Hoje era Roberto que brincava. Na verdade sempre fora, mas pela primeira vez Roberto se deixava ver, mesmo sem o saber.
Está de volta ao camarim. Ainda ouve a euforia da platéia, que pouco a pouco se esvazia. Novamente olha fixo para o espelho, que, apesar da maquiagem, o devolve imagem nua. Roberto prolonga o encontro enquanto pode. Com bolinhas de algodão, vai borrando o rosto. Por detrás da branca máscara vai surgindo a velha expressão.
Roberto se despia de Crispão. Conformado, para ele dá adeus. Mas Roberto esclarecido, em algum lugar o sabia. No fundo, toda aquela tristeza não era por Crispão. Hoje percebeu o que há muito já sentia.
Roberto despedia-se de Roberto, um eu que só existia sob a máscara de Crispão.

Peça em 1 ato

Cena Final.

Gertrudes – Joaquim, você voltou! Ah, Joaquim, que alegria, Joaquim! (Abraça um cobertor como se fosse o Joaquim) Estava morrendo de saudade. Sempre acreditei que você voltava um dia. Está mais gordo, mais bonito. O quê? Esses corpos? Acabei de matá-los. Eu mesma. E não me arrependo. Não, Joaquim, você está louco? Depois de tanto tempo sem ver você, você vai chegando e já quer me entregar à polícia? Vem cá, Joaquim, vem. Vamos matar a saudade. Você se lembra que eu tinha vergonha de dizer “eu te amo”? Agora eu digo sem ficar vermelha nem nada. Vem cá, me dá um abraço bem apertado. Assim. (Abraça o cobertor carinhosamente) Eu te amo, Joaquim.

Permanece abraçada por um tempo. Lentamente puxa uma faca imaginária da cintura e dá vários golpes nas costas do “Joaquim”.

Solta o cobertor no chão, arrasta-o para próximo dos outros “cadáveres”. Senta junto deles e olha longamente para cada um.

Gertrudes – Agora vocês vão ficar juntos, todos comigo até o fim.

Voz I – É naquele apartamento?
Voz II – Naquele mesmo.
Voz I – E não sai pra nada?
Voz II – Pra nada.
Voz III – Eu não acredito nisso.
Voz II – Nunca mais ninguém a viu.
Voz IV – tem gente que diz que ela mudou.
Voz II – Nem mudou nem viajou. Ela está aí.
Voz III – Duvido! Como é que uma pessoa pode se trancar assim?
Voz II – Mas é verdade. Vamos, o elevador chegou.

A luz continua caindo em resistência, lentamente, com Gertrudes, sentada, contemplando seus “cadáveres”.

(trecho extraído da peça "Há Vagas para Moças de Fino Trato" de Alcione Araújo)

Fecham-se as cortinas.

Aplausos ecoam pelo teatro. Marília definitivamente estava magnífica como Gertrudes. Irreconhecível. Movimentos extremamente fortes, olhares transtornados... tudo naquela doce e frágil figura. Para quem a conhecia pessoalmente o choque era ainda maior. Marília era toda doçura, delicada, voz suave... Em Gertrudes experimentou gestos que seu corpo até então não conhecia. Usou vozes que nem sabia que tinha. Foi um grande laboratório, era o que dizia em todas as entrevistas.

Marília havia acabado de ganhar um prêmio de melhor atriz com a peça. “Há vagas para moças de fino trato” sem dúvida veio para marcar sua carreira. Agora Marília já estava no camarim. Em volta, buquês de flores a parabenizavam pela já reconhecida atuação. Sem pressa, começa a tirar a maquiagem, a desnudar-se de Gertrudes. Vestia-se Marília.


Começa o Primeiro ato
...

domingo, 12 de junho de 2005

Sem título

Era uma vez fulano de tal,
que cansou de fingir,
e passou a mentir.

De pai para filho

Vitinho já contava cinco anos. Era um mourinho muito do engraçadinho. Mourinho. Era assim que o pai carinhosamente o chamava. Frederico sabia que brincadeiras com a cor cedo viriam, achou por bem começar logo em casa. Que primeiro elas partissem do amor, e depois que viessem as crueldades.

Não demorou muito para no colégio começarem a implicar. Menos ainda demorou para Vitinho começar a desconfiar. Sua mãe era cor de neve; o pai no máximo café, e isso quando iam muito à praia; os irmãos todos leitinhos. Vitinho começava a sentir-se diferente.

Adoção é assunto muito complicado. Se não for bem dissolvido cedo em casa, é indigestão pro resto da vida garantida. Para Vitinho ainda era mais complicado. Como se não bastasse a filiação, ainda destoava em tom dos seus cinco irmãos.

Certo dia Frederico busca Vitinho na escola e o leva para um passeio. Diz que ele já é um homenzinho e que vão ter hoje uma conversa de homem para homem. Vitinho fica todo prosa pela emancipação. Com muito jeito Frederico vai elaborando a invenção. Diz antes de tudo que o ama mais que o infinito, mas que todo pai não é perfeito. Conta história de um carnaval, onde conheceu uma moça linda. Estava brigado com a mamãe, e por um dia pela moça linda se apaixonou. Descreve para Vitinho com preocupada delicadeza a figura de sua imaginária mãe. Diz ter ela uma pele especial, que misturada com a dele fez nascer seu tom mourinho. A moça linda hoje estava no céu, continua Frederico dizendo que, assim que Vitinho nasceu, ele o levara para mamãe que desde então o amava como filho.

Por fim deixa bem explicadinho que o sangue do papai era o mesmo de Vitinho. Frederico ainda termina a pequena mentirinha em enorme tom de segredo. Um segredo só deles. Apenas entre pai e filho. Vitinho nunca se sentiu tão especial, seguro e perto do pai.

Pouco se passou e surgiram as primeiras brincadeiras. “Vitinho é adotado... Vitinho é adotado...”. Às vezes feitas até pelos irmãos. Podiam gritar o quanto quisessem, Vitinho escutava e sinceramente não ligava. Estufava o peito e expirava a certeza: sou filho do meu pai. Pensava só consigo, pensamento que nunca chegou a de fato ganhar som. Nem precisava. Ele sabia, e isso bastava.

O tempo passou, e, forte e confiante, Vitinho cresceu. Hoje Vitor sabe de toda a verdade. O bastante para saber que fora amado de verdade...

Alice

Alice já nascera estigmatizada. Antes mesmo de nascer já carregava no nome sua sina. Alice vem do grego. Aletheia, verdade. Ao nascer vestiu seu nome como uma luva... Alice das longas madeixas claras, da pele alva e macia, dos olhos transparentes cor de céu.

Desde pequena aprendera a sempre dizer a verdade. E assim foi crescendo. Via suas amigas mentirem... chegava em casa e contava tudo... tudo sobre ela.. tudo sobre as amigas.. tudo sobre tudo. E como sabia que não podia fazer tudo... simplesmente não fazia.

Alice era a filha que toda a mãe queria ter. Era perfeita. Linda, educada, meiga, e não mentia. É certo que de vez em quando Alice balançava... Mas isso só a tornava mais perfeita ainda, porque até seus deslizes ela contava, enchendo a mãe de orgulho.

- Minha filha é um anjo – vangloriava-se a mãe para suas amigas - Me conta tudo.
E de fato Alice contava. Completava agora seus vinte anos e continuava vivendo em pura verdade. Belo dia, sem menores pretextos Alice foi para uma festa. Despediu-se da mãe que, mais que em si própria, na filha confiava.

Por algum motivo que também não se sabe bem o qual, Alice resolveu experimentar uma bebida diferente. Já tinha tomado os seus porres, mas nada que para sua imagem fosse nocivo. Mantinha sempre uma ponta de consciência, e era o suficiente para que jamais se tornasse inconseqüente. Voltava para a casa e junto com a mãe ria das palhaçadas que fazia quando bebia. Além de raro o episódio, suas loucuras eram sempre inocentes.

Hoje quis provar do absinto. As amigas estranharam a ousadia, mas é claro que não pouparam incentivos. A primeira dose bateu forte. Muito mais pela fraqueza de Alice do que pela força da bebida. Em instantes Alice já estava diferente. A retina acostumada olhava agora com novos olhares, os gestos sempre contidos dançavam a liberdade, a censura que nunca deu trégua caíra enfim em sono pesado.

Alice se deu o direito de hoje ser absinto. A idéia parecia mais que legitimada. Aquela ali não era ela. Agora tudo era apenas efeito do ato, a bebida pagava o pato! Continuava bebendo, e quanto mais bebia menos Alice em Alice enxergavam. Estava adorando. Fez da noite mais sonho que os que já tivera. Beijava um, beijava dois, beijava os quantos as amigas empurravam. Dançando seguia a diante. Em algum momento da festa, Alice parou e olhou para trás. O estrago já estava tão grande que voltar era plano distante. Agora relaxara de vez. Conheceu lugares que sabia que jamais voltaria a estar. Com o seu corpo brincava com seu último par.
Alice nunca voltara tão tarde sem antes avisar. Hoje chegou brilhando com o pico do sol. O relógio marcava meio dia. A mãe, acordada até agora, deixava mais uma mensagem em seu celular. Alice já não mostra qualquer vestígio alcoólico, no máximo um calor de combustão que insiste em colorir as suas bochechas. Internamente ri por não lembrar o nome dele. Para em frente a porta de casa e pensa na maneira mais muda de abri-la. Lembra do horário, das recentes e frequentes ligações de sua mãe e ri, agora para fora, com a idéia de uma entrada sorrateira àquela altura. Olha mais uma vez para porta, coloca o seu melhor sorriso de bom dia, e se deixa aparecer para a mãe plantada do outro lado. Alice concentra-se nas palavras e, plácida, se põe a se explicar. Pela primeira vez na vida, Alice mente. Pela primeira vez, Alice é Alice.

sexta-feira, 10 de junho de 2005

Maria Madalena

Segunda feira. Maria acordara com os galos para prestar seu habitual serviço comunitário. Como fazia bem começar o dia fazendo o bem... Em troca, aqueles singelos sorrisos, ainda desdentados, injetados de esperança e descolados da dura realidade daquelas crianças.
Todo o dia Maria ia à Casa de Amparo, alimentar de comida e alegria aquelas carentes vidas. Onze horas da manhã. Maria retornava para casa. Seus pés, já cansados, tocavam suavemente um por um os degraus da virtuosa escadaria de entrada. A porta, toda de pura madeira, estava sempre aberta, recebendo, larga e imponente, quem quisesse entrar. Já dentro de casa, Maria sempre olhava para o teto, como se recebesse dos anjos nele pintados um grande e aconchegante abraço. Em seguida olhava para o pai, e o reverenciava com sua rotineira e delicada homenagem gestual.
Maria revezava com as irmãs os preparatórios para as reuniões diárias que lá aconteciam. Hoje havia ficado com as da tarde. Havia tempo até a próxima, mas Maria não gostava de ócio. Quando não estava preparando uma missa, lendo, ou ajudando alguém, sentia-se incomodada, precisava estar fazendo alguma coisa. Resolve então iniciar os preparativos para a missa das 13 horas. Pega o cálice na sacristia e lembra que era a primeira segunda feira do mês, dia de reabastecer o estoque de vinho da Igreja. Onde estaria sua cabeça... como esquecera? Maria era tão responsável...
A caminhada até a Casa de Amparo era longa e cansativa. No caminho havia um pequeno mercado, onde Maria costumava comprar vinho religiosamente toda primeira segunda feira do mês no trajeto de volta para casa. Uma simples fagulha de cansaço e preguiça de refazer todo aquele percurso a faz largar imediatamente o cálice e se por rapidamente a caminho do mercado.
Maria flutuava pelas ruas. Passos curtos e esvoaçantes pousavam sobre a calçada por onde passava. As brancas sapatilhas mal se faziam ver misturadas no branco do longo hábito, que continuava ininterrupto até o pescoço. Sua pele quase não destoava da veste que lhe cobria todo o corpo. Os cabelos cobertos por um branco véu escondiam sua cor. Apenas seu rosto permitia-se ver. Que rosto! Maria era linda, mas poucos o sabiam. Uma beleza discreta, tímida, quase invisível, mas que mesmo assim parecia pedir perdão. Seus passos agora já demonstram sentir o peso do seu corpo. Ainda assim, Maria segue seu rumo mantendo ainda a leveza e a pureza habitual, como se acariciasse cada pedaço do chão que pisava.
Do outro lado da calçada, exalando cansaço, andava Madalena. Seus pés quase nus equilibravam-se numa alta plataforma salto 11. Ah, que belo contraste fazia o branco da sandália ao abraçar aquela pele morena. Acima, bem acima, o mesmo contraste. A saia branca pousada sobre suas coxas douradas provocava outro insinuante choque. Mais acima, antes mesmo dos quadris, mais pele. No meio, magistralmente colocado, um ponto de strass enfeitava seu umbigo. Ainda subindo, mais fartura. Uma perfeita moldura de tecido rosa exibia seus seios como troféus. Madalena chamava tanta atenção que Maria, mesmo sem ousar olhar, não conseguia não percebê-la.
Madalena também seguia em direção ao mercado. Estava na rua desde ontem, e agora, exausta voltava do trabalho. Sua casa ficava a duas esquinas do mercado, prédio antigo de portaria pequena. Morava no sétimo andar, último quarto e sala do corredor.
Dividia o apartamento com duas irmãs, e revezava com elas a casa para o ofício. Toda segunda Madalena ficava com a parte da tarde. Tinha que fazer hora até que a manhã terminasse. Madalena até que gostava de trabalhar na rua, fazia com que rendesse mais. Emendava um trabalho no outro até que pudesse voltar para casa. Todos os dias, religiosamente, passava no mercado no caminho de casa e comprava uma garrafa de vinho.
O elevador, desde que Madalena se mudou para lá, não funciona. Seus pés, já sempre descalços quando chegava, arrastavam-se um por um pelos sete imundos lances de escada. Chegava em casa, e se a porta estivesse trancada, sabia que teria que esperar mais. Mas pelo menos tinha companhia. Costumava despencar no corredor e beber do gargalo o vinho recém comprado até que a porta se abrisse, e saísse dela uma figura que embora sempre diferente, era sempre igual. Sua tolerância media uma garrafa. Se a porta não se abrisse até a última gota de vinho, Madalena a abria ela mesma, e expulsava quem estivesse dentro.
Madalena sempre olhava para o chão antes de mais nada, odiava quando o deixavam sujo. Em seguida olhava para um santinho que deixava em cima da geladeira. Ia até ele, fazia também a sua coreografia, que terminava sempre com um beijo quente na ponta dos dedos. Diferente de Maria, Madalena não tinha, e nem queria, pai. Há muito tempo já se via órfã e aprendera a se virar sozinha. Aquele santo a bastava. Não pedia nada para ele, apenas que guardasse o seu dinheiro, e sabia que nisso, nem que ele quisesse, poderia decepcioná-la. Na base do santo havia um buraco, onde Madalena colocava todo o lucro que tivera no dia.
Agora estavam as duas, Maria e Madalena, dividindo a mesma rua, dirigindo-se ao mesmo destino. O mercado estava próximo, faltavam apenas algumas quadras, dobrar uma esquina, andar mais uma quadra... Aproximam-se dois sujeitos que de longe fediam a bebida. Param, as secam com o olhar, trocam gargalhadas escrachadas entre si e avançam ferozmente. Os dois se dividem, cada um em direção a sua caça. Madalena tenta correr. Maria congela de pavor.
Ambos armados, os sujeitos as agarram e bestialmente começam a lhes rasgar as roupas. Madalena se debate com toda a força defendendo sua honra como se esta fosse o que tivesse de mais valioso. O homem que a agarrava estava tão bêbado que mal conseguia segurar a arma e tirar as calças ao mesmo tempo. Aquele bafo de animal quente e cheirando a álcool provoca nela uma repulsa tão grande que sem medir as conseqüências (talvez confiando na embriaguês do sujeito), Madalena, com um golpe certeiro, acerta brutalmente o saco do infeliz que ainda procurava entrada. Ele uiva de dor e cambaleia pelo chão. Madalena pega a arma que cai de suas patas e aponta para ele.
O homem foge, e enquanto corria, Madalena, invadida por uma sensação de raiva e nojo, pensa em atirar. Não consegue. Sua paralisia é bruscamente interrompida por gritos histéricos. Maria estava sendo violentamente estuprada.
A idéia de atirar passa novamente por sua cabeça, mas de novo algo a freia. Não podia mais esperar. Precisava agir. Madalena parte com tudo para cima do indivíduo e com o revólver ainda em pulso lhe dá uma coronhada na cabeça. O homem cai desacordado deixando cair também a sua arma.
- Vem! – berra Madalena já se pondo aflitivamente a correr.
Maria olha surdamente para seu próprio corpo. Vê o sangue que escorre por entre suas coxas, agora totalmente à mostra. Lembra do vinho que ainda não comprara. O sangue não para de escorrer. Maria o enxuga com as mãos que desesperadas tentam a livrar do pecado.
- Vem! – grita mais uma vez Madalena, agora uma voz distante quase a dobrar a esquina.
Ainda surda, Maria olha para as mãos, uma mistura de sangue e gozo. Olha para o sujeito, ainda desacordado, estirado ao chão com as calças arriadas. Seu corpo ainda trêmulo assumira um peso que não conhecia. Ela desfalece, mas retoma a consciência a tempo de amparar sua queda, deixando no chão carimbada sua palma com a tinta do impregnado pecado. Sem pensar Maria pega o revólver caído ao seu lado, e atira. No coração. O homem dá um gemido e treme as pernas num curto espasmo de vida. Outro tiro. Já não há mais resposta. Mais um tiro. O homem já está morto. Maria continua. Outro, outro e outro...
Foram onze tiros.

O pingente

Todo o domingo Luís se reunia com os amigos do trabalho para a tradicional pelada. Hoje o clima estava tenso. Amanhã seria dia de corte na empresa. Já sabiam que da área, um seria cortado. Entre passes, chutes, dribles e apitos, o pensamento era só um. O jogo termina com um recorde de faltas, e nenhum gol.

Vão todos para o banheiro. As conversas hoje são poucas. A tradicional cantoria, não se ouve. Luís toma uma ducha demorada. Silêncio. Pensa já estar sozinho quando sai e vê Edu chorando baixo. De toalha enrolada, Luís senta ao seu lado. Os dois conversam demorado, eram amigos de longa data. Edu era casado, Luís que apresentara o casal. A mulher de Edu, uma antiga namorada, título comum entre quase todas as mulheres que conhecia. Luís era um descarado Dom Juan, teve mais namoradas do que figurinhas.

Edu agora soluça. Diz estar infeliz no casamento, confuso... Olhos nos olhos. De repente, sem completar o raciocínio, tasca um quente beijo em Luís, que responde com um empurrão ainda mais urgente que o beijo inesperado.
- Ficou maluco?
Silêncio. Aquela figura nua, caída ao chão do banheiro, agora aos prantos, provocara em Luís um profundo ódio. Impulsivamente o chuta. Edu não reage. Depois um soco. Luís não pára. E completamente embriagado por sensações até então adormecidas, espanca Edu até perceber que, muito sem querer, o matara. Desespera-se. Lava suas mãos, veste-se apressado. Olha pela última vez o corpo de Edu, estirado, nu. Vestia apenas um colar de ouro que repousava em seu pescoço. No peito brilhava um pequeno crucifixo, refletindo a fraca luz do vestiário. Luís lembra do dia em que comprou o pingente para Edu. Tinha um igual. Agacha-se, retira delicadamente o colar de Edu e o guarda.

No dia seguinte, no trabalho, a notícia já se espalhara. Edu havia sido brutalmente assassinado durante um infeliz assalto. O clima era de luto. Todos adoravam Edu. Nos corredores o pensamento sobre quem teria cometido tal bárbaro crime brigava com a tensão pela dúvida sobre quem seria o demitido, será que alguém o seria? Afinal, já estavam em menos um...

O enterro está marcado para uma da tarde. Onze horas e todos já estão na sala de conferência para a temida reunião. O telefone toca na mesa central. O funcionário mais antigo atende. O chefe anunciava da matriz: Não haveria mais corte na área.

No enterro compulsivos choros escondem respirações aliviadas. Luís é quem mais chora. Enxuga o pranto com as mãos que ainda guardam a lembrança da pele de Edu.

À noite encontra com a namorada. A abraça mais forte que o habitual. Retira do bolso o colar de Edu e o coloca cuidadosamente no pescoço de Mariana. Ajeita carinhosamente o pingente, e a pede em casamento.

Santa Rotina

Celeste orava como santa pela manhã e vivia como cobra o resto do dia. À noite rezava um pouco mais.

quinta-feira, 9 de junho de 2005

A Prova

Elaine chegara no Rio de Janeiro não fazia seis meses. Veio cursar cinema. Passou em primeiro lugar para a UFF. Na primeira semana estava eufórica. Nova cidade, nova faculdade, novos assuntos... Os novos amigos demoraram um pouco pra chegar. Elaine era bem diferente dos outros calouros. Menina recatada, veio do interior. Custou a se encaixar. Havia grupo para quase tudo. Os descolados, os intelectuais, os gays, os revolucionários, os moderados, os alucinados... Isa e Amanda faziam parte de todos. Eram encantadoras. Saíam com todo mundo, eram convidadas sempre para tudo.

Por alguma razão, Isa e Amanda resolveram se aproximar. Elaine não negava um só convite. Juntas foram para festas, bares, boates, rodas de samba... Isa e Amanda freqüentemente beijavam garotas. Não eram lésbicas, apenas gostavam de brincar. Logo na primeira noite com Elaine, as duas se beijaram. O desconforto na nova amiga era visível, mas muito maior era seu esforço em parecer natural. E assim passou-se o tempo. Elaine já estava calejada da sensação, agora mal se incomodava.

Belo dia, finalmente, a tentativa começou. Estavam em uma festa. Comemoração do fim do primeiro período da faculdade. Amanda e Isa organizaram toda a festa. Estava lá a turma inteira, mais um monte de figura da noite cult carioca. Uma amiga das meninas se interessa por Elaine. Amanda e Isa transbordavam excitação. Não era de hoje, já tentavam Elaine para a experiência, mas, especialmente hoje, estavam implacáveis. Elaine não conseguia dizer não. Elas o sabiam bem... Apresentam Elaine a Bebel. De longe assistem ao cruel espetáculo. O desconforto de Elaine agora berrava. Um som mudo, que a seco engolia, empurrado com aquela feminina saliva.
De alguma maneira, fingindo não enxergar a dor que provocavam, Isa e Amanda se divertiam. Queriam ver até onde Elaine iria. Para elas era tudo muito simples, bastava um simples não. Admitir-se desgostosa, aceitar-se preconceituosa.

A noite se estendia. Elaine resistia. De fato surpreendera. Agüentou o quanto pôde. Eram três horas da manhã, seu corpo enfim tomou controle. Elaine começa a passar mal. O ar se torna ralo, lhe faltando nos pulmões. Se despede de Amanda e Isa que a julgam encenação. A essa altura Elaine pouco se importa, quer apenas a sua cama e um pouco de solidão.

Isa e Amanda sem perceber estão muito mais felizes, aprovadas em um teste que nem elas se sabiam. Passaram a noite assistindo um eu que não podiam. O preconceito que nelas se escondia, em Elaine se redimia. E por se verem não sozinhas, sentiam, sem saber, a verdade mais amiga.
Elaine voltou para Ribeirão, onde o preconceito é assumido sem precisar de hipocrisias.

Epitáfio

“Meu amor o que você faria?
Se só te restasse um dia
Se O mundo fosse acabar
Me diz o que você faria?
Corria pra um shopping center
Ou para uma academia
Pra se esquecer que não dá tempo
Pro tempo que já se perdia
Meu amor o que você faria?
Se só te restasse esse dia
Se O mundo fosse acabar
Me diz o que você faria?
Andava pelado na chuva
Corria no meio da rua
Entrava de roupa no mar
Trepava sem camisinha
Meu amor o que você faria?
O que você faria?
Abria a porta do Hospício
Trancava da delegacia
Dinamitava o meu carro
Parava o tráfego e ria
Meu amor o que você faria?
Se só te restasse esse dia
Se O mundo fosse acabar
Me diz o que você faria?
Meu amor o que você faria?
Se só te restasse esse dia
Se O mundo fosse acabar
Me diz o que você faria?”

Oswaldo delira com a música.

Olha para o relógio, já passam de meia noite. Hoje seria rei. Vai para lugares que há muito tempo não visitava. Lembra de Paula, Luciana, da cunhada, da empregada, de Fernanda, de Isadora, de Bete e de Amanda... Mas nada se comparava àquela voz, no centro do palco, que parecia cantar exclusivamente para ele, como se fosse o único na platéia. “O que você faria se só te restasse esse dia?...” cantava ela fitando seus olhos. Quase um pedido, uma súplica. De quem era mesmo essa música? Paulinho o que? Mas pouco importa, aquela música já não tinha mais autor. Era dela. Dela para ele, e só para ele. Que cantora... que corpo... que boca... Era a figura mais exótica e sensual que Oswaldo já vira. Uma covardia. Qual seria o nome dela? Não importa... Oswaldo a pega pelos cabelos, a despe ali mesmo, no palco. De repente chegam Paula, Luciana, a cunhada... não. Chegam estranhas, mulheres desconhecidas que nunca vira antes. Oswaldo não hesita, vira o animal que nunca antes fora. Oswaldo está nas nuvens. Agora, literalmente. Já era dia. Contempla o nascer do sol como há muito não fazia. Estava voando. Voar de asa delta era seu sonho desde criança. Meio dia. Oswaldo se desespera. Já estava na metade do dia, ainda faltava tanta coisa... Pensa em fazer uma festa com seus melhores amigos. Estava muito cedo para uma festa. Não, não estava muito cedo para nada. Chama um por um os seus amigos, a maioria não via faz tempo. Se divertem como nunca. Bebem, dançam, riem. Chegam mais mulheres. Oswaldo se esbalda novamente. Sete horas. Já é noite, Oswaldo lembra da mulher e do filho. Como amava aquela mulher, era apaixonado pelo filho. Oswaldo vai para casa. Cozinha ele próprio o jantar. Os três jantam às gargalhadas. Oswaldo faz piadas, brincadeiras. Termina em guerra de comida. Brinca com o filho, diz que o ama, conta história e o faz dormir. Agora está no quarto. À sós com sua esposa, se declara como nunca o fizera. Tem a noite de amor mais linda que já tivera.
A música, ainda se ouve ao fundo. Já é outra. Oswaldo olha para o palco, ninguém. Percebe que o som agora vem das caixas. Nunca vira um show tão rápido. Olha para a mesa, uma coleção de copos vazios. Olha em volta, aqueles jovens rapazes se divertindo com strippers.
Olha para o relógio, quatro horas da manhã. Leva um susto. Dali a pouco teria que acordar para o trabalho. Regina iria o matar, prometera voltar cedo. Levanta. Se percebe completamente embriagado. Despede-se do afilhado, o parabeniza pela festa...
Volta para casa dirigindo em máxima concentração. Regina já está dormindo. Oswaldo tira a roupa cuidadosamente. Não queria acordá-la, muito menos que ela o visse naquele estado. Veste o pijama e deita silenciosamente ao seu lado.
O alarme toca. Regina ainda dorme. Oswaldo vai direto para o banho tirar o bafo da noite, dos pensamentos de ontem. Volta para o quarto, Regina não está mais na cama. Oswaldo já sente o cheiro dos seus ovos mexidos com bacon. Na cozinha, senta a família. Marcelinho, para variar, está atrasado para a escola. Engolem todos o café, e saem, ao mesmo tempo. Oswaldo estava um pouco adiantado para o trabalho, pensa em oferecer carona para o filho, mas Regina o faz primeiro. Na garagem Oswaldo dá um beijo na mulher, enquanto aperta o botão para abrir o carro. O beijo dura menos que o barulho de trava.
Chega no escritório. As papeladas de sempre já o aguardam. Meio dia. Hora de almoçar. O mesmo restaurante, as mesmas pessoas, os mesmos assuntos... Oswaldo volta para o trabalho, a mesma papelada.
Sete horas. Fim de expediente. Oswaldo volta para casa.
Nove horas, Marcelo e Regina esperam por Oswaldo para jantar. Dez horas. O jantar já está frio. Meia noite. Toca o telefone. Oswaldo nunca mais iria jantar.

quinta-feira, 2 de junho de 2005

A boneca Daniela

Venerada no mundo da moda, navalhada pelos intelectuais. Daniela era inclusive estudada em faculdades. Ícone da superficialidade moderna. Era a modelo da vez, e não era por menos. Dona de um corpo escultural, de um rosto deslumbrante, e de um charme inexplicável, Daniela ainda contava com um carisma incomparável. Na passarela era só Daniela. Virara febre internacional.
Modelo desde os doze anos, Daniela sempre se destacara, mas era agora que provava o gosto do apogeu. Tinha seus recém feitos vinte e um anos. A festa foi um verdadeiro conto de fadas. Fotografada por todas as revistas, elogiada por todos colunistas, satirizada pela massa intelectualista.
A mãe de Daniela a acompanhava em quase todas as viagens. Também modelo desde de jovem, agora já aposentada, Rosana cuidava de todos os passos da carreira da filha. Longe da inspeção da mãe, que não pudera desta vez acompanhá-la, Daniela desmaia pela primeira vez. Seis meses depois, viria a falecer, vítima de anorexia.
Um escândalo. Brotam ferozes críticas à cultura do corpo, ataca-se a moda. Um prato cheio para a minoria esclarecida, cuja voz, agora, virara moda, mas por pouco tempo. Não demorou muito e novas Danielas já eram cultuadas.
Um ano se passou. Rosana organizava um leilão com as roupas de Daniela. Sua profissão agora era não deixar morrer a imagem da filha. O armário de Daniela, até então intocado, é enfim aberto. Rosana seleciona cuidadosamente as peças. Lembra de Daniela, de sua perfeita beleza, de sua contagiante simpatia. Lembra de cada desfile, como era lindo ver Daniela na passarela.
No fundo do armário, perdida entre suas luxuosas roupas, se escondia uma boneca. A boneca “Daniela”.
Aparentava ter umas trezentas páginas, nenhuma numerada. A boneca, ainda – e agora para sempre – inacabada, estava escrita toda à mão. Logo na folha de rosto, uma nota, quase um recado.
Este livro, o quero à mão. Minhas rasuras, as quero vivas.
Nenhuma idéia deve ser perdida.

Na página seguinte uma breve apresentação.
A moda escarra e enfia
humano-fagia.
Solidão e melancolia,
a fingir-se de magia.

Sou uma moribunda em mais um dia...
nessa ciranda da apatia.
Da nudez fui despida, hoje estou perdida.
Uma vez assim vestida, só almejo despedida.

A vida assim doía...
Viva a anorexia!

Rosana fecha o livro, em pânico. Um súbito enjôo a faz suar as mãos que comprimem o livro fechado. Não conseguiria ler mais uma linha. Num cego impulso liga a lareira da pomposa sala e, página por página, queima aquela maldita boneca, inteira, infeliz rascunho, que, cinza por cinza, apaga para sempre da memória “Daniela”... um livro que morria antes mesmo de existir.
No dia seguinte, o Leilão é um sucesso. Daniela volta às manchetes. É lembrada como a eterna princesa da moda. E voltam os intelectos a atacá-la. Rosana está radiante.

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