domingo, 20 de setembro de 2009

Boca seca

ele queria dizer sim
ela também.
de tanta sede
os dois falaram tanto
que ficaram mudos.

segunda-feira, 29 de agosto de 2005

Algumas Notas...

Este livro nasceu de um profundo desejo de falar sobre as máscaras que todo o homem veste. Sempre fui uma inquieta a procura de mim mesma, o que não tardaria em resultar em uma grande vontade de discursar sobre o tema.
Primeiro me veio o incômodo, depois o interesse. Hoje o que tenho é fascínio.
Julgo que seria o homem um ser por demais desinteressante se não fossem as suas máscaras. Atrás delas se escondem, atrás delas se revelam. E é neste complexo paradoxo que consiste a sua riqueza.
Somos por natureza seres do conflito. Seres trágicos em constante guerra com nós mesmos. Metade Apolo, metade Dionísio em eterna tensão. E desta árdua luta pelo equilíbrio resulta nosso conflituoso comportamento.
Mais uma contradição se faz imperativa. Por natureza desequilibrados não aceitamos desequilíbrios. É exatamente este o espaço que ocupam as máscaras. Entram em cena para fazer dialogar pacificamente desejo e censura.
São muitas as formas de um homem mascarar-se. Quisera eu falar de todas, ou ao menos ter acesso a todas as suas múltiplas facetas.
Este livro é apenas um rascunho de uma engatinhante consciência sobre o tema. Optei por organizá-lo em sub-temas, já que cada um já seria um universo sem fronteiras. Não tenho a pretensão de o delimitar. Preocupei-me apenas em criar sólidos leques que abrangessem de forma variada as inúmeras faces de uma máscara. Os títulos de cada capítulo - assim os chamarei por mera necessidade conceitual - são furtos de músicas que já anunciam o universo de máscaras que irá se mostrar.
A música tem a particular qualidade de sutilmente penetrar no inconsciente. Aproveitar esta influência me veio quase como uma ordem. Quis realçar o que em algum lugar já estaria escondido. Vou de Chico Buarque a Baia, de Candeia a Rita Lee, de Noel Rosa a Cazuza. Compositores de estilos contrastantes que só vem a reforçar a universalidade das máscaras.
A idéia de expressá-las em contos não poderia ter motivação diferente do que justamente neles me proponho a ilustrar. Atrás das personagens me liberto de qualquer pré-julgamento que possa me enredar. Confesso-me. Aqui começo a me esconder para poder me revelar. Sou eu pessoa a vestir-me de autora para tirar a minha mais mascarada máscara. Esta imagem acostumada que aprendi a chamar de “eu”.

No mais, deixo que falem as personagens...

Camila Moreira.

Capítulos

> Mentiras sinceras me interessam

“Um homem que começa mentindo disfarçada e descaradamente
acaba muita vez exato e sincero.”
Machado de Assis
  1. Sem-título
  2. Alice
  3. De pai para filho
  4. Quem ama mente



> Eu e mim

“Dê ao homem uma máscara, e ele lhe revelará a sua alma.”

Oscar Wilde
  1. Peça em 1 ato
  2. Noite dos Mascarados
  3. Um adeus



> Com que roupa, eu vou

“O ser humano é um peregrino. É só na aparência que ele tem uma geografia.”

Nélida Piñon
  1. Identidade de Pano



> Bicho mau bicho homem

“Dê a cada homem o que merece e quem escapará do açoite?”

Willian Shakespeare



> Se acaso seu pranto molhar meu papel

“A verdade sobre um homem é antes de tudo aquilo que ele mantém escondido.”

André Maireaux

  1. Batatas



> Rir pra não chorar

“Excesso de pranto ri. Excesso de riso chora.”

Willian Blake
  1. Mais uma noite
  2. Lapa à Lacarte

quarta-feira, 22 de junho de 2005

Um adeus

O nome dele era Roberto Filgueiras, mas aqui é conhecido como Crispão. Roberto estava no camarim. Está parado, olhando para o espelho já não se sabe há quanto tempo. Talvez horas. De repente, chegando como um tapa, uma voz familiar o atinge agudamente: “15 minutos”. Roberto não aparenta susto, ou qualquer mudança em sua feição. Vira o rosto, abre um preguiçoso sorriso.
- Estarei pronto.
Volta-se para o espelho e fita mais uma vez o seu rosto, ainda nu... aquela velha e habitual expressão. Agora abre vagarosamente o seu estojo de maquiagem, fazendo soar um dolorido barulho. Concentrado, o ouve. Abre a tampa do seu já gasto pankake e olha por alguns segundos aquele sólido tapete de pó. O acaricia lentamente com a esponjinha surrada, que pouco a pouco vai colorindo sua pele de branco. Observa atentamente a transformação. Não está com pressa. Pega agora o batom, vermelho rubro, e pinta um esgarçado e engraçado sorriso. Com o lápis, vai redesenhando seu olhar... hoje, um desenho com linhas de despedida.
A Companhia há muito estava com problemas financeiros. Equilibravam-se, penduravam-se para sobreviver. A corda, enfim, rompera. As dívidas agora pesavam mais que o suportável. Todos estavam tristes, menos Roberto. Roberto estava rasgado. Parecia o único a admitir que o que mudou não foi o peso que carregavam, mas os ombros com os quais o carregavam...
Roberto era ator. Vivia de teatro desde os dezoito anos. Aos vinte e nove, o circo o encontrou. Está na mesma Companhia desde então. Hoje, aos cinqüenta e quatro anos, vive o dia que nunca imaginou.
Ao longe ouve o burburinho da platéia. A arena estava lotada. Mas mesmo que nada ouvisse já o sabia. O último dia atraía o público. O último dia de qualquer coisa sempre atrai público. Roberto ri da ironia. Era um homem bem esclarecido. Um tímido esboço de sorriso. Justo o homem que não suporta o fim, se delicia sempre em assisti-lo. Contanto que à distância, claro. O fim do outro. O sorriso por um instante vira riso, mas é logo calado pelo tom da ocasião.
Falta apenas o famoso nariz. Coloca-o com um quê de dor. Estava pronto! Crispão sai do camarim pulsando energia, com um sorriso que transborda a boca. Antes de entrar em cena, respira fundo. O ar agora era puro. Sente o chão que o devolve inteiro. Crispão sente-se inteiro por inteiro. Adentra a arena, triunfante. Não por vitória, mas exatamente por agora permitir o fracasso. Crispão não tinha que ser bom, estava longe do perfeito. Contava para todos seus segredos, fazia graça dos seus defeitos. Ali, não só o aceitavam, o adoravam. Crispão entrava sempre todo tímido. Os ombros entrando no pescoço, um andar andando torto, um olhar olhando o chão. A voz mal saía, falava baixo e sobre tudo fazia perguntas de inseguro. A platéia logo ria. Aos poucos Crispão se revelava. Um arrogante de primeira, que se escondia na vergonha. Tirava sarro da humildade, debochava da humanidade. A platéia gargalhava.
Crispão mentia e desmentia, e assim seu show seguia. Deliravam com Crispão. Seu número hoje durou mais que o habitual. Estava inspirado. Crispão brincava sempre com a mais sincera sinceridade. Hoje era Roberto que brincava. Na verdade sempre fora, mas pela primeira vez Roberto se deixava ver, mesmo sem o saber.
Está de volta ao camarim. Ainda ouve a euforia da platéia, que pouco a pouco se esvazia. Novamente olha fixo para o espelho, que, apesar da maquiagem, o devolve imagem nua. Roberto prolonga o encontro enquanto pode. Com bolinhas de algodão, vai borrando o rosto. Por detrás da branca máscara vai surgindo a velha expressão.
Roberto se despia de Crispão. Conformado, para ele dá adeus. Mas Roberto esclarecido, em algum lugar o sabia. No fundo, toda aquela tristeza não era por Crispão. Hoje percebeu o que há muito já sentia.
Roberto despedia-se de Roberto, um eu que só existia sob a máscara de Crispão.

Peça em 1 ato

Cena Final.

Gertrudes – Joaquim, você voltou! Ah, Joaquim, que alegria, Joaquim! (Abraça um cobertor como se fosse o Joaquim) Estava morrendo de saudade. Sempre acreditei que você voltava um dia. Está mais gordo, mais bonito. O quê? Esses corpos? Acabei de matá-los. Eu mesma. E não me arrependo. Não, Joaquim, você está louco? Depois de tanto tempo sem ver você, você vai chegando e já quer me entregar à polícia? Vem cá, Joaquim, vem. Vamos matar a saudade. Você se lembra que eu tinha vergonha de dizer “eu te amo”? Agora eu digo sem ficar vermelha nem nada. Vem cá, me dá um abraço bem apertado. Assim. (Abraça o cobertor carinhosamente) Eu te amo, Joaquim.

Permanece abraçada por um tempo. Lentamente puxa uma faca imaginária da cintura e dá vários golpes nas costas do “Joaquim”.

Solta o cobertor no chão, arrasta-o para próximo dos outros “cadáveres”. Senta junto deles e olha longamente para cada um.

Gertrudes – Agora vocês vão ficar juntos, todos comigo até o fim.

Voz I – É naquele apartamento?
Voz II – Naquele mesmo.
Voz I – E não sai pra nada?
Voz II – Pra nada.
Voz III – Eu não acredito nisso.
Voz II – Nunca mais ninguém a viu.
Voz IV – tem gente que diz que ela mudou.
Voz II – Nem mudou nem viajou. Ela está aí.
Voz III – Duvido! Como é que uma pessoa pode se trancar assim?
Voz II – Mas é verdade. Vamos, o elevador chegou.

A luz continua caindo em resistência, lentamente, com Gertrudes, sentada, contemplando seus “cadáveres”.

(trecho extraído da peça "Há Vagas para Moças de Fino Trato" de Alcione Araújo)

Fecham-se as cortinas.

Aplausos ecoam pelo teatro. Marília definitivamente estava magnífica como Gertrudes. Irreconhecível. Movimentos extremamente fortes, olhares transtornados... tudo naquela doce e frágil figura. Para quem a conhecia pessoalmente o choque era ainda maior. Marília era toda doçura, delicada, voz suave... Em Gertrudes experimentou gestos que seu corpo até então não conhecia. Usou vozes que nem sabia que tinha. Foi um grande laboratório, era o que dizia em todas as entrevistas.

Marília havia acabado de ganhar um prêmio de melhor atriz com a peça. “Há vagas para moças de fino trato” sem dúvida veio para marcar sua carreira. Agora Marília já estava no camarim. Em volta, buquês de flores a parabenizavam pela já reconhecida atuação. Sem pressa, começa a tirar a maquiagem, a desnudar-se de Gertrudes. Vestia-se Marília.


Começa o Primeiro ato
...

domingo, 12 de junho de 2005

Sem título

Era uma vez fulano de tal,
que cansou de fingir,
e passou a mentir.

De pai para filho

Vitinho já contava cinco anos. Era um mourinho muito do engraçadinho. Mourinho. Era assim que o pai carinhosamente o chamava. Frederico sabia que brincadeiras com a cor cedo viriam, achou por bem começar logo em casa. Que primeiro elas partissem do amor, e depois que viessem as crueldades.

Não demorou muito para no colégio começarem a implicar. Menos ainda demorou para Vitinho começar a desconfiar. Sua mãe era cor de neve; o pai no máximo café, e isso quando iam muito à praia; os irmãos todos leitinhos. Vitinho começava a sentir-se diferente.

Adoção é assunto muito complicado. Se não for bem dissolvido cedo em casa, é indigestão pro resto da vida garantida. Para Vitinho ainda era mais complicado. Como se não bastasse a filiação, ainda destoava em tom dos seus cinco irmãos.

Certo dia Frederico busca Vitinho na escola e o leva para um passeio. Diz que ele já é um homenzinho e que vão ter hoje uma conversa de homem para homem. Vitinho fica todo prosa pela emancipação. Com muito jeito Frederico vai elaborando a invenção. Diz antes de tudo que o ama mais que o infinito, mas que todo pai não é perfeito. Conta história de um carnaval, onde conheceu uma moça linda. Estava brigado com a mamãe, e por um dia pela moça linda se apaixonou. Descreve para Vitinho com preocupada delicadeza a figura de sua imaginária mãe. Diz ter ela uma pele especial, que misturada com a dele fez nascer seu tom mourinho. A moça linda hoje estava no céu, continua Frederico dizendo que, assim que Vitinho nasceu, ele o levara para mamãe que desde então o amava como filho.

Por fim deixa bem explicadinho que o sangue do papai era o mesmo de Vitinho. Frederico ainda termina a pequena mentirinha em enorme tom de segredo. Um segredo só deles. Apenas entre pai e filho. Vitinho nunca se sentiu tão especial, seguro e perto do pai.

Pouco se passou e surgiram as primeiras brincadeiras. “Vitinho é adotado... Vitinho é adotado...”. Às vezes feitas até pelos irmãos. Podiam gritar o quanto quisessem, Vitinho escutava e sinceramente não ligava. Estufava o peito e expirava a certeza: sou filho do meu pai. Pensava só consigo, pensamento que nunca chegou a de fato ganhar som. Nem precisava. Ele sabia, e isso bastava.

O tempo passou, e, forte e confiante, Vitinho cresceu. Hoje Vitor sabe de toda a verdade. O bastante para saber que fora amado de verdade...

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