sexta-feira, 10 de junho de 2005

Maria Madalena

Segunda feira. Maria acordara com os galos para prestar seu habitual serviço comunitário. Como fazia bem começar o dia fazendo o bem... Em troca, aqueles singelos sorrisos, ainda desdentados, injetados de esperança e descolados da dura realidade daquelas crianças.
Todo o dia Maria ia à Casa de Amparo, alimentar de comida e alegria aquelas carentes vidas. Onze horas da manhã. Maria retornava para casa. Seus pés, já cansados, tocavam suavemente um por um os degraus da virtuosa escadaria de entrada. A porta, toda de pura madeira, estava sempre aberta, recebendo, larga e imponente, quem quisesse entrar. Já dentro de casa, Maria sempre olhava para o teto, como se recebesse dos anjos nele pintados um grande e aconchegante abraço. Em seguida olhava para o pai, e o reverenciava com sua rotineira e delicada homenagem gestual.
Maria revezava com as irmãs os preparatórios para as reuniões diárias que lá aconteciam. Hoje havia ficado com as da tarde. Havia tempo até a próxima, mas Maria não gostava de ócio. Quando não estava preparando uma missa, lendo, ou ajudando alguém, sentia-se incomodada, precisava estar fazendo alguma coisa. Resolve então iniciar os preparativos para a missa das 13 horas. Pega o cálice na sacristia e lembra que era a primeira segunda feira do mês, dia de reabastecer o estoque de vinho da Igreja. Onde estaria sua cabeça... como esquecera? Maria era tão responsável...
A caminhada até a Casa de Amparo era longa e cansativa. No caminho havia um pequeno mercado, onde Maria costumava comprar vinho religiosamente toda primeira segunda feira do mês no trajeto de volta para casa. Uma simples fagulha de cansaço e preguiça de refazer todo aquele percurso a faz largar imediatamente o cálice e se por rapidamente a caminho do mercado.
Maria flutuava pelas ruas. Passos curtos e esvoaçantes pousavam sobre a calçada por onde passava. As brancas sapatilhas mal se faziam ver misturadas no branco do longo hábito, que continuava ininterrupto até o pescoço. Sua pele quase não destoava da veste que lhe cobria todo o corpo. Os cabelos cobertos por um branco véu escondiam sua cor. Apenas seu rosto permitia-se ver. Que rosto! Maria era linda, mas poucos o sabiam. Uma beleza discreta, tímida, quase invisível, mas que mesmo assim parecia pedir perdão. Seus passos agora já demonstram sentir o peso do seu corpo. Ainda assim, Maria segue seu rumo mantendo ainda a leveza e a pureza habitual, como se acariciasse cada pedaço do chão que pisava.
Do outro lado da calçada, exalando cansaço, andava Madalena. Seus pés quase nus equilibravam-se numa alta plataforma salto 11. Ah, que belo contraste fazia o branco da sandália ao abraçar aquela pele morena. Acima, bem acima, o mesmo contraste. A saia branca pousada sobre suas coxas douradas provocava outro insinuante choque. Mais acima, antes mesmo dos quadris, mais pele. No meio, magistralmente colocado, um ponto de strass enfeitava seu umbigo. Ainda subindo, mais fartura. Uma perfeita moldura de tecido rosa exibia seus seios como troféus. Madalena chamava tanta atenção que Maria, mesmo sem ousar olhar, não conseguia não percebê-la.
Madalena também seguia em direção ao mercado. Estava na rua desde ontem, e agora, exausta voltava do trabalho. Sua casa ficava a duas esquinas do mercado, prédio antigo de portaria pequena. Morava no sétimo andar, último quarto e sala do corredor.
Dividia o apartamento com duas irmãs, e revezava com elas a casa para o ofício. Toda segunda Madalena ficava com a parte da tarde. Tinha que fazer hora até que a manhã terminasse. Madalena até que gostava de trabalhar na rua, fazia com que rendesse mais. Emendava um trabalho no outro até que pudesse voltar para casa. Todos os dias, religiosamente, passava no mercado no caminho de casa e comprava uma garrafa de vinho.
O elevador, desde que Madalena se mudou para lá, não funciona. Seus pés, já sempre descalços quando chegava, arrastavam-se um por um pelos sete imundos lances de escada. Chegava em casa, e se a porta estivesse trancada, sabia que teria que esperar mais. Mas pelo menos tinha companhia. Costumava despencar no corredor e beber do gargalo o vinho recém comprado até que a porta se abrisse, e saísse dela uma figura que embora sempre diferente, era sempre igual. Sua tolerância media uma garrafa. Se a porta não se abrisse até a última gota de vinho, Madalena a abria ela mesma, e expulsava quem estivesse dentro.
Madalena sempre olhava para o chão antes de mais nada, odiava quando o deixavam sujo. Em seguida olhava para um santinho que deixava em cima da geladeira. Ia até ele, fazia também a sua coreografia, que terminava sempre com um beijo quente na ponta dos dedos. Diferente de Maria, Madalena não tinha, e nem queria, pai. Há muito tempo já se via órfã e aprendera a se virar sozinha. Aquele santo a bastava. Não pedia nada para ele, apenas que guardasse o seu dinheiro, e sabia que nisso, nem que ele quisesse, poderia decepcioná-la. Na base do santo havia um buraco, onde Madalena colocava todo o lucro que tivera no dia.
Agora estavam as duas, Maria e Madalena, dividindo a mesma rua, dirigindo-se ao mesmo destino. O mercado estava próximo, faltavam apenas algumas quadras, dobrar uma esquina, andar mais uma quadra... Aproximam-se dois sujeitos que de longe fediam a bebida. Param, as secam com o olhar, trocam gargalhadas escrachadas entre si e avançam ferozmente. Os dois se dividem, cada um em direção a sua caça. Madalena tenta correr. Maria congela de pavor.
Ambos armados, os sujeitos as agarram e bestialmente começam a lhes rasgar as roupas. Madalena se debate com toda a força defendendo sua honra como se esta fosse o que tivesse de mais valioso. O homem que a agarrava estava tão bêbado que mal conseguia segurar a arma e tirar as calças ao mesmo tempo. Aquele bafo de animal quente e cheirando a álcool provoca nela uma repulsa tão grande que sem medir as conseqüências (talvez confiando na embriaguês do sujeito), Madalena, com um golpe certeiro, acerta brutalmente o saco do infeliz que ainda procurava entrada. Ele uiva de dor e cambaleia pelo chão. Madalena pega a arma que cai de suas patas e aponta para ele.
O homem foge, e enquanto corria, Madalena, invadida por uma sensação de raiva e nojo, pensa em atirar. Não consegue. Sua paralisia é bruscamente interrompida por gritos histéricos. Maria estava sendo violentamente estuprada.
A idéia de atirar passa novamente por sua cabeça, mas de novo algo a freia. Não podia mais esperar. Precisava agir. Madalena parte com tudo para cima do indivíduo e com o revólver ainda em pulso lhe dá uma coronhada na cabeça. O homem cai desacordado deixando cair também a sua arma.
- Vem! – berra Madalena já se pondo aflitivamente a correr.
Maria olha surdamente para seu próprio corpo. Vê o sangue que escorre por entre suas coxas, agora totalmente à mostra. Lembra do vinho que ainda não comprara. O sangue não para de escorrer. Maria o enxuga com as mãos que desesperadas tentam a livrar do pecado.
- Vem! – grita mais uma vez Madalena, agora uma voz distante quase a dobrar a esquina.
Ainda surda, Maria olha para as mãos, uma mistura de sangue e gozo. Olha para o sujeito, ainda desacordado, estirado ao chão com as calças arriadas. Seu corpo ainda trêmulo assumira um peso que não conhecia. Ela desfalece, mas retoma a consciência a tempo de amparar sua queda, deixando no chão carimbada sua palma com a tinta do impregnado pecado. Sem pensar Maria pega o revólver caído ao seu lado, e atira. No coração. O homem dá um gemido e treme as pernas num curto espasmo de vida. Outro tiro. Já não há mais resposta. Mais um tiro. O homem já está morto. Maria continua. Outro, outro e outro...
Foram onze tiros.

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