domingo, 12 de junho de 2005

Alice

Alice já nascera estigmatizada. Antes mesmo de nascer já carregava no nome sua sina. Alice vem do grego. Aletheia, verdade. Ao nascer vestiu seu nome como uma luva... Alice das longas madeixas claras, da pele alva e macia, dos olhos transparentes cor de céu.

Desde pequena aprendera a sempre dizer a verdade. E assim foi crescendo. Via suas amigas mentirem... chegava em casa e contava tudo... tudo sobre ela.. tudo sobre as amigas.. tudo sobre tudo. E como sabia que não podia fazer tudo... simplesmente não fazia.

Alice era a filha que toda a mãe queria ter. Era perfeita. Linda, educada, meiga, e não mentia. É certo que de vez em quando Alice balançava... Mas isso só a tornava mais perfeita ainda, porque até seus deslizes ela contava, enchendo a mãe de orgulho.

- Minha filha é um anjo – vangloriava-se a mãe para suas amigas - Me conta tudo.
E de fato Alice contava. Completava agora seus vinte anos e continuava vivendo em pura verdade. Belo dia, sem menores pretextos Alice foi para uma festa. Despediu-se da mãe que, mais que em si própria, na filha confiava.

Por algum motivo que também não se sabe bem o qual, Alice resolveu experimentar uma bebida diferente. Já tinha tomado os seus porres, mas nada que para sua imagem fosse nocivo. Mantinha sempre uma ponta de consciência, e era o suficiente para que jamais se tornasse inconseqüente. Voltava para a casa e junto com a mãe ria das palhaçadas que fazia quando bebia. Além de raro o episódio, suas loucuras eram sempre inocentes.

Hoje quis provar do absinto. As amigas estranharam a ousadia, mas é claro que não pouparam incentivos. A primeira dose bateu forte. Muito mais pela fraqueza de Alice do que pela força da bebida. Em instantes Alice já estava diferente. A retina acostumada olhava agora com novos olhares, os gestos sempre contidos dançavam a liberdade, a censura que nunca deu trégua caíra enfim em sono pesado.

Alice se deu o direito de hoje ser absinto. A idéia parecia mais que legitimada. Aquela ali não era ela. Agora tudo era apenas efeito do ato, a bebida pagava o pato! Continuava bebendo, e quanto mais bebia menos Alice em Alice enxergavam. Estava adorando. Fez da noite mais sonho que os que já tivera. Beijava um, beijava dois, beijava os quantos as amigas empurravam. Dançando seguia a diante. Em algum momento da festa, Alice parou e olhou para trás. O estrago já estava tão grande que voltar era plano distante. Agora relaxara de vez. Conheceu lugares que sabia que jamais voltaria a estar. Com o seu corpo brincava com seu último par.
Alice nunca voltara tão tarde sem antes avisar. Hoje chegou brilhando com o pico do sol. O relógio marcava meio dia. A mãe, acordada até agora, deixava mais uma mensagem em seu celular. Alice já não mostra qualquer vestígio alcoólico, no máximo um calor de combustão que insiste em colorir as suas bochechas. Internamente ri por não lembrar o nome dele. Para em frente a porta de casa e pensa na maneira mais muda de abri-la. Lembra do horário, das recentes e frequentes ligações de sua mãe e ri, agora para fora, com a idéia de uma entrada sorrateira àquela altura. Olha mais uma vez para porta, coloca o seu melhor sorriso de bom dia, e se deixa aparecer para a mãe plantada do outro lado. Alice concentra-se nas palavras e, plácida, se põe a se explicar. Pela primeira vez na vida, Alice mente. Pela primeira vez, Alice é Alice.

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